O turbilhão de sons agonizava sua mente. A metrópole vista daquela altura evidenciava sua imponência através de vidros que refletiam a sua ira, seu poder, sua vida. E quem ousasse questionar seus desejos teria por fim a tragédia. Ele se considerava um deus, fosse um na sua pobre concepção, mas não passava de um reles qualquer perante a Ele. Entretanto, um diferencial ele teve, e foi por isso que o escolhi.
— Mas o que há de errado com você? Será que não consegue fazer nada certo? — seus berros furiosos ecoavam na sala para o homem diante de sua mesa.
— Desculpe-me, Sr. Dumas, garanto que nunca mais se repetirá... — o outro suplicava mantendo a compostura, sentado à sua frente.
— E não vai... De hoje em diante não trabalha mais nesta empresa.
— Mas... Mas Sr. Dumas, eu tenho família — disse tremendo a voz de medo.
— Pouco me importa sobre sua “família“, saia da minha frente agora e nunca ouse pisar aqui novamente! Passar bem.
O homem saiu da sala frustrado. Não iria insistir mais. Fosse sua culpa ou não, o erro estava feito, e a integridade, pelo menos ali, era imposta pelos preceitos do outro. Justo ou nem tanto ele era assim, indiscutível. Tudo como gostava. Sentia-se absoluto.
Ao encontrar-se sozinho no escritório, voltou a tomar seu Martini e apreciou a estranha lua acinzentada daquela noite pela vista panorâmica do aposento. “Imigrante inútil... odeio essa gente”, ele pensava tranquilamente antes de ser interrompido pela secretária do outro cômodo. Vestia um terno cinza risca giz com uma gravata negra e um broche prata dado por sua esposa, um triângulo representando responsabilidade e poder, associado com a trindade.
— Senhor Dumas, sua mulher na linha.
— Pode deixar que eu atendo, volte ao trabalho, Bianca.
Assim que a porta foi fechada sua feição normal foi tomada pelo tédio. Com um olhar sério ele retirou o telefone do gancho.
— O que foi dessa vez, Rebeca? — a chateação expressa em sua voz.
— Clara não está bem. Ela está passando muito mal. Por favor, venha para casa agora, precisamos de você... Eu já chamei um médico, ele está a caminho — dizia aflita.
— Se o médico está vindo, não há porque se preocupar. Tenho coisas mais sérias a resolver.
— Pelo amor de Deus, Norman, ela é sua filha!
Ele desligou o telefone.
Presunçoso demais. Mal sabia que um ato tão simples poderia causar tanto sofrimento. Rebeca ainda aguardava que ele fosse mudar, que um dia tudo aquilo bastaria e ela se encontrasse feliz como uma família integrada e unida. Norman às vezes tentava, mas a iludia. A vida pode ser desonesta para alguns, mas no fim, haverá o acerto de contas, e isso, meu caro, não poderemos mudar tão cedo.
Ele saiu do trabalho no final do expediente. Ficava sentado o dia todo recebendo ligações que no fim não mudavam em nada sua rotina. Tinha pleno poder na empresa, mandava e desmandava, brincava com seu comando. Tinha um nome renomado, “Norman Dumas”. Quem não o conhecesse provavelmente não tinha acesso a jornais ou televisões. Dono das maiores empresas da América, dominava diversos ramos: alimentos, roupas, cosméticos, construtoras, transporte. Praticamente em tudo havia seu nome, seu espólio. Para ele, tudo aquilo ainda era pouco. Para ele, “tudo” era apenas um começo.
— Leve-me para casa, Sanchez — ordenou entrando no Lamborghini negro e espaçoso com bancos de couro que possuía no estacionamento da empresa. Seus olhos cinzentos passando por todos os detalhes em vermelho do modelo de última geração que adquirira uma semana antes.
O homem não respondeu nada, sabia como deveria se comportar. Seguiram em silêncio pelas ruas agitadas de Manhattan enquanto Mozart tocava nos alto-falantes do assento traseiro. A vista da cidade em movimento envolveu Norman por alguns breves minutos enquanto mexia em seus cabelos castanhos. Faces desconhecidas, pessoas comuns que viviam suas vidas pacatas faziam parte do exterior urbano. “Pequenas peças descartáveis”, ele olhava com desprezo pela janela.
O carro parou. Sinal vermelho. Norman pôde analisar melhor onde estava agora. “Lugar de gente pobre” — coçou o queixo irritado. Não gostava de ver aquelas pessoas passando por sua frente. Queria que não existissem. Sua visão de mundo era mesquinha e fria. Possuía traços nazistas em sua personalidade e nunca omitira isso de ninguém.
Na mesma rua, frente à calçada, um homem encapuzado o encarava através do vidro escuro da janela. Vestia maltrapilhos imundos e rastejava pelo asfalto segurando uma pequena tigela com moedas. Norman, ao notar o indivíduo, percebeu que este o afrontava seriamente. A barba malcuidada não revelou sua idade, mas ainda assim parecia prestes a cair morto. Quanto mais se aproximava, mais Norman se aquietava em seu banco. “Ele não pode me ver, não pode fazer nada”.
O andarilho situou-se frente a frente com a janela e prestou-se a olhar severamente para o passageiro do carro. Norman riu da situação em que estava e, nervoso, no fundo, pediu para que o sinal avançasse logo. O homem estendeu a tigela e bateu de leve com três toques na janela.
— Sanchez, será que dá pra acelerar aí? Tem um doente batendo no meu carro... — disse impaciente.
O motorista não respondeu, e mesmo que estivesse acelerando o automóvel para sair daquele lugar, o carro permanecia imóvel. Embora soubesse o que estivesse fazendo, mesmo que não apresentando resultados, fora treinado para agir assim, silencioso e obediente. Somente respondia quando sua opinião deveria ser bem-vinda.
O vidro que os separava, aparentemente estremeceu e em segundos se abriu, colocando os dois ao mesmo ar. Norman se enfureceu.
— O que você fez seu imprestável? Quem mandou abrir esta janela? Feche isso já!
Sanchez, visivelmente confuso, apertava no botão automático para o vidro subir, mas nada acontecia. Já do lado de fora, o estranho homem aparentava estar em silêncio, mas de seu interior uma voz rouca e medonha ecoava para os ouvidos de Norman numa língua não compreendida. Este fingiu não estar ouvindo nada. Apenas ignorou a presença daquele ser ao seu lado, de pé, fétido e imundo.
— Será que dá pra andar com isso logo?!
A etérea voz continuava a emanar do nada, atingindo-o em cheio. Composta por sussurros e lamúrias, ela enchia sua cabeça deixando sua percepção da realidade atordoada. Tudo o que ouvia, ilusório fosse, estava o fazendo se sentir tonto e prestes a padecer sob o soar de trombetas invisíveis.
Norman virou-se para ele e lentamente ergueu sua mão direita, fazendo um gesto ofensivo com o dedo do meio. Sua mão fora instantaneamente jogada para baixo, enquanto as do mendigo se estenderam para seu pescoço e o apertaram contra o colarinho.
— O que você está fazendo? — dizia com dificuldade, tentando livrar-se.
O homem continuava a encará-lo, impassível, enquanto o estrangulava. Após toda a tensão, o vidro finalmente pôde subir separando sua garganta das mãos do estranho. No mesmo momento o sinal se mostrou verde e Sanchez acelerou com o carro para longe dali, desta vez, saindo do lugar.
O silêncio repousou em sua alma. Norman não estava com cabeça para broncas ou qualquer outra coisa que fizesse em seu estado habitual. Ele tentou ser racional enquanto ainda fitava o sujeito parado na rua com o mesmo olhar.
Na virada da esquina, os olhos do sujeito adquiriram um tom de vermelho intenso acompanhado de um sorriso maléfico que surgira em sua face. Logo, aquela visão aterrorizante sumiu com a entrada de prédios ininterruptos na trajetória.
— Você viu aquilo? — Norman perguntou assustado ao motorista.
— Vi... Essa região possui muitas pessoas necessitadas. O mendigo só queria algumas moedas.
— O homem tentou me estrangular! — sua expressão ensandecida de ódio.
— Como? — perguntou aturdido.
— Ele abriu a janela e tentou me estrangular, você não viu? — Norman gritava desesperado. — E os olhos dele brilharam no final da rua... Estavam vermelhos!
— Me desculpe, Sr. Dumas, — Sanchez se encolheu pela agressividade do outro. — mas apenas o vi pedindo dinheiro enquanto batia na janela fechada que o senhor disse estar aberta.
— Mas a janela estava aberta!
Sanches se emudeceu por um momento, tentando entender o que estava acontecendo ali.
— Estava sim, foi erro meu, Sr. Dumas. Desculpe-me novamente, te garanto que isto nunca voltará a acontecer.
Sanchez não respondeu o que queria, embora não estivesse à parte do que havia acontecido na realidade. Ele poderia perder seu emprego se irritasse ainda mais Norman, e o salário era bom o bastante para que suportasse todas as situações lhe impostas. Até ali, depois de meses como motorista, não havia errado em nada, como muitos antes de sua chegada. Por isso, preferiu seguir sua rota impassível pelas ruas de asfalto movimentadas.
Por mais que quisesse transparecer normalidade, Norman estava tenso. O que presenciara fora estranho e surreal. Apesar de se sentir bem botando a culpa no motorista, ele sabia que não fora ele. A figura do homem naquela rua embebia sua mente em alucinações e elas não eram nada agradáveis.
Ao chegar ao enorme prédio residencial, no centro de Nova Iorque, tentou não se mostrar muito afetado pelo ocorrido daquela noite. Enquanto subia o elevador do prédio, olhando fixamente para a porta, as vozes e os sons de trombetas voltaram em sua cabeça, ecoando levemente, e o deixaram perturbado. Ele se apoiou na parede mais próxima, enquanto tentava se livrar dos sons de tortura.
Ao chegar à cobertura, fora direto ao quarto, passando pelos cômodos da casa que estava vazia. Clara e Rebeca deveriam estar no hospital e isso o reconfortou um pouco. Assim que chegou ao quarto, deitou-se em sua cama exausto, tentando não pensar muito. Imediatamente dormiu e se entregou a estranhos pesadelos.
Próximo a sua cama, uma figura de olhos sangrentos se espreitava vigiando-o. Para Norman, tal figura que vislumbrou durante a noite no sono conturbado era apenas uma ilusão. Foi o que constatou após acordar no quarto iluminado pela manhã do dia seguinte, ofegante pelo pesadelo horrendo que presenciara em ilusões bem planejadas. Contudo, a cada vez que retornava aos sonhos nas noites seguintes, esta mesma criatura possuía faces diferentes, sempre horrendas e disformes, a o observar, como uma acompanhante noturna.
Mesmo ciente da criatura vigilante durante a noite, ele se sentia preso à cama, como se uma força indescritível o mantivesse acorrentado num mau sonho, que por vezes interrompido, mostrava o ser em pé ao seu lado. A cada visão recorrente, era atingido por um sentimento vívido de terror, que o carcomia por dentro, acometido por uma vontade agravante de gritar. A boca aberta sem nada a balbuciar e as pupilas bem dilatadas evidenciavam que a paralisia do sono não teria chegado àquele nível extremo em ocorrências naturais. Fosse isso o pior, o que o atormentava era outra coisa. Ele ainda o sentia por perto durante o dia. Mesmo não o vendo, sua presença era perceptível. Durante semanas, viu em diversas pessoas os referidos olhos vermelhos tomarem vida por breves segundos. Empregados, sócios, pessoas alheias na rua, qualquer um o encarava com o escarlate vivo nas pupilas, mas logo a cor sumia e as pessoas voltavam aos seus afazeres com naturalidade.
Norman conviveu por um bom tempo com o medo, a fúria, o horror, a sensação mais penosa dos homens: a do primeiro contato com um demônio de verdade.
Norman Dumas.
35 anos.
Empresário multibilionário.
Status – sob averiguação.